Passado na Virgínia Pré-Guerra Civil, o livro A Dança da Água conta a história de Hiram, um escravo, filho de uma Tarefeira com um membro da Qualidade. Seu pai, Howell Walker é dono de uma fazenda em Lockless e está lutando contra as dificuldades de uma terra infértil após tantos anos de exploração do solo plantando tabaco. Apesar de criar Hiram como um Tarefeiro, Walker reconhece as aptidões dele como uma qualidade a ser explorada para benefício próprio: cuidar de seu meio-irmão Maynard, cujas aptidões não são qualificadas e nem reconhecidas para terem responsabilidades maiores, como a gestão da fazenda.
“O mundo tá rodando e seguindo em frente sem essa terra. Já se foi o tempo que essa terra era o cume da sociedade e da gente branca. Eu tava lá. Você nasceu nesse tempo de decadência, mas eu me lembro.”
Como todo Tarefeiro, Hiram conhece todas as suas responsabilidades e tarefas da Rua. Contudo, achando estar desperdiçando seus talentos, Howell decide tirá-lo dos campos com trabalho pesado e torná-lo escravo da casa grande, permitindo não só que frequentasse jantares e entretivesse os convidados com seus truques de memória como também tivesse aulas particulares para explorar suas aptidões que mais nenhum Tarefeiro possuía naquelas terras.
A ideia de ter sido reconhecido como membro da família e ter importância nas tarefas que eram propostas a ele, encheu Hiram de esperanças falsas. Ter determinada liberdade entre as terras da fazenda era algo que ele vivia sonhando, porém todos os sonhos se esvaíram quando, por pedido de seu pai, ilegítimo e dono de suas próprias decisões, Hiram se torna criado do seu meio-irmão.
A tarefa árdua de ter que cuidar de Maynard e suas atitudes impensadas levou Hiram a questionar sua própria vida e buscar ainda mais soluções para ter sua liberdade, caminhando sobre a terra que sonhava em explorar. Tantos pensamentos surgiram que, durante a volta de um passeio de carruagem com seu meio-irmão, no qual ele era o condutor do veículo, Hiram ficou cego em suas desilusões perdendo o controle dos cavalos, caindo dentro do rio. Um terrível acidente que daria um novo sentido à vida de Hiram assim como um dom raro pouco conhecido.
A Dança da Água trata de assuntos extremamente importantes que refletem questões do século passado ainda na atualidade. Os horrores da escravidão são abordados na história de modo nu e cru e as divisões entre origens e raças se mostram muito presentes e duras. Essas características tornam a narrativa de A Dança da Água em uma fonte de reflexão profunda.
A leitura no começo é arrastada, porém, ao contrário de muitos feedbacks que li, não achei a história complicada a ponto de não entender o que estava acontecendo, o porquê e com quem. Acredito que a leitura de A Dança da Água não seja algo para ser lido com tanta rapidez, pois a narrativa não compõe diversas ações, nem muitos mistérios. É a retratação ficcional de algo que aconteceu durante o período da escravidão, então não espere encontrar muitas reviravoltas, pois se trata da história de vida de um povo.
A leitura requer paciência para absorver todos os detalhes com calma, aprofundando a narrativa e retirando detalhes para compará-los com as histórias da vida real de escravos em um passado sombrio e vergonhoso da sociedade.
Um detalhe que acho importante ressaltar é o pouquíssimo uso da palavra escravo. São raros os momentos que o autor usa a escravidão como representação dos acontecimentos. Ao invés disso ele nomeia os escravos como Tarefeiros – que é o nome dado aos caboclos responsáveis pela colheita dos campos – e os proprietários de terras como Qualidade. Achei essa perspectiva interessante na escrita de Ta-Nehisi Coates, porque ele usou uma palavra mais “amigável” que possui um contexto duro por trás do significado.
“Não havia paz na escravidão, porque cada dia sob o poder de outrem era um dia de guerra.”
Além disso, a Condução, caracterizada por um dom raro que permite que quem o possui possa se deslocar de um lugar ao outro, apenas com o poder de memórias poderosas e marcantes, simbolizou para mim algo muito mais profundo do que apenas uma narrativa ficcional sobre um ritual hipotético. A Condução, na minha visão, desenha de modo subjetivo o poder que as lembranças têm sobre a vida e como tê-las nos faz evoluir, permitindo nos conduzir para um objetivo que desejamos realizar.
“Minha força sempre foi a memória. Não o juízo. Perdoar era irrelevante, mas esquecer era como a morte”
Essa questão da memória sempre foi muito reforçada pelo autor durante todo o livro, todos os capítulos e todos os personagens possuem lembranças distintas e elas se mostram extremamente poderosas quando são aprofundadas pela história.
Outro ponto que merece destaque é a água como conexão das lembranças e da Condução. A princípio achei que a água era apenas um elemento da lembrança do Hiram pelo fato de ele lembrar da mãe dele dançando com um jarro de água na cabeça. Porém o uso desse elemento era a principal conexão para que a Condução do personagem pudesse acontecer. Essa característica de Condução é distinta apenas ao Hiram, por causa de suas memórias com sua mãe, por isso ele conseguia Conduzir apenas em locais que houvesse água como ligação entre ele e as suas memórias do passado.
Apesar de não ter lido rapidamente, achado a leitura arrastada, sem emoção e com poucas ações, o livro trouxe bastante reflexão, que pode, ou não, ser subjetiva para cada leitor. Gostei muito do modo como o autor abordou um assunto tão importante e tão marcante na história. Não foi uma leitura ruim, porém é preciso ler com muita calma para não deixar passar nenhum detalhe, pois os capítulos são carregados de personagens que ficam presentes apenas por alguns parágrafos e depois não aparecem mais e histórias que são contadas apenas um vez e deixadas de lado para dar prosseguimento a outras lembranças.
“A memória é o carro, a memória é o caminho, a memória é a ponte que liga a maldição da escravidão à bênção da liberdade.”
4/5
Ano: 2020
Páginas: 400
Autor:Ta-Nehisi Coates
Idioma: Português
Editora: Intrínseca (Intrínsecos #22)