Akuany é uma jovem cuja vida foi devastada pela tragédia. Criada em um vilarejo às margens do Nilo Branco, sua tranquilidade foi destruída quando o local foi atacado pelo exército de um homem que se auto proclamava “O Esperado,” enviado por Alá. Durante o ataque, seu pai foi morto por uma explosão, deixando Akuany e seu irmão à mercê de um mundo perigoso e incerto.
Com a revolução em curso e sem ter onde se abrigar, Akuany e seu irmão foram resgatados e acolhidos por Yaseen, um comerciante amigo de seu pai. Ao lado de Yaseen, que se tornou um porto seguro em meio ao caos, Akuany passou a carregar em seu coração um amor profundo e silencioso, nutrido desde a infância e marcado pelo peso das circunstâncias.
Akuany e seu irmão encontraram abrigo na casa da irmã de Yaseen, em Al-Ubayyid, onde foram acolhidos e passaram a viver. No entanto, enquanto seu irmão parecia ser bem-vindo, sendo escolhido como filho adotivo de Halima, Akuany percebia um certo desprezo direcionado a ela. Ainda assim, ela era profundamente grata por ter sido resgatada e ajudava nos afazeres domésticos para mostrar sua gratidão.
A tranquilidade, porém, não durou muito. Halima, sem consultar seu irmão vendeu Akuany à esposa do governador, que pertencia ao partido opositor de Maomé Amade, o Mádi Esperado. Agora nomeada como Zamzam, Akuany teve que enfrentar uma nova realidade marcada pela escravidão e pelo distanciamento de seu irmão e de Yaseen.
“Com Gordon longe, as leis antiescravistas impopulares poderiam ser ignoradas. Ele encontrou a família da garota e jogou algum dinheiro, redigiu uma nota de venda com testemunhas presentes. Foi como Akuany começou sua nova vida. Oficialmente escravizada.”
“A Voz das Águas” é um livro denso e muito, muito desafiador. No início, a dificuldade em me conectar com a narrativa foi bem grande, porque a cronologia se sobrepõe a toda hora e tornou a leitura lenta e, muitas vezes, difícil de seguir.
Além disso, a quantidade de personagens, que aparecem toda hora, com nomes difíceis de memorizar, a complexidade dos detalhes e o fato de a história ter inúmeras palavras em árabe, sem possuir notas de rodapé – já que o glossário se encontra apenas no final do livro – foi um desafio, e confesso que não foi fácil entrar de cabeça na história por conta desses aspectos.
O livro é dividido em capítulos que contam a história de cada personagem e como suas vidas estão interligadas no contexto da guerra e do sofrimento. Akuany, conhecida também como Zamzam; Yaseen; Robert; Muça e Fátima.
Akuany ou Zamzam é a protagonista da história e a que mais foi marcada pelas mudanças da revolução, sobrevivendo à morte do pai, o distanciamento de seu irmão, a escravidão e a turbulência de viver em um país em guerra.
“Daquele momento em diante, a perspectiva de Zamzam sobre o próprio nome mudou. Ela, que falava o idioma do Rio, era nomeada em homenagem à água sagrada. O rio livre e rápido era de uma tremenda majestade, mas um poço contido também poderia ser um milagre, poderoso ao próprio modo, proporcionando uma surpresa atrás da outra.”
Yaseen é um homem de caráter forte que enfrenta seus próprios dilemas por ter permitido que Akuany fosse escravizada, quando prometeu que cuidaria dela, e por mais que tenha se tornado um pilar para Akuany, também carrega dentro de si os conflitos gerados pela guerra que afeta todos ao seu redor.
“Justiça, justiça. Me dói admitir que está em falta. E essa dor vem das minhas lealdades divididas. O progresso não pode ser detido; é assim que o mundo funciona. E o progresso de meu país não pode ser separado do progresso do Egito e da Turquia. Estamos emaranhados. Contudo, a injustiça lança tempestades, a injustiça causa o tipo de dano que só perpetua a si mesmo. Olho por olho, seja o olho de um príncipe ou de um escravizado. Não é o que diz a lei? É por isso que estou aqui. Para aprender melhor, aprender mais.”
Robert é um artista escocês pouco compreendido, que desde pequeno não teve incentivo para se tornar pintor e lutava para ser reconhecido. Buscando um olhar mais apurado e jornalístico, ele viaja para Al-Ubayyid com o objetivo de retratar a guerra em suas pinturas. Porém sua jornada é marcada pela observação da violência e pelo choque cultural ao se deparar com uma realidade completamente diferente da que conhecia.
Muça, coloca toda a sua lealdade ao falso Mádi, acreditando que ele é o homem mandado por Alá, o levando a lutar por uma causa que ele acredita ser divina, mas sua devoção inabalável à causa também o torna um instrumento da guerra do qual ele mal consegue compreender a verdadeira dimensão.
“Ele era o esperado pelo qual o mundo corrupto aguardava, a salvação necessária, o guiado que encheria a terra de justiça e equidade. Ele está convencido do que diz. Completamente convencido. A certeza é ardente e contagiosa.”
E Fátima, mãe de Yaseen, dedica seus dias de aposentadoria como comerciante de materiais de pintura para Robert, enquanto usa sua expertise de vendas para ocultar a entrega de mensagens partidárias.
Mas apesar da quantidade de personagens, a leitura consegue pegar um ritmo mais generoso após alguns capítulos, e comecei a entender mais a história e me conectar com os personagens.
A narrativa traz uma visão profunda sobre o contexto político e religioso do final do século XIX, onde o Sudão foi palco de um conflito brutal conhecido como a Guerra Anglo-Sudanesa, que envolveu forças britânicas, egípcias e os sudaneses Madistas. A autora conseguiu explorar muito bem os espólios da guerra e seus efeitos na vida das pessoas, apresentando um retrato doloroso de como a política, a religião e o imperialismo marcaram a história do Sudão de maneira devastadora.
“E havia outros, centenas, que estavam mais motivados pelos espólios da guerra. Precisavam ser instruídos. Povos diferentes, temperamentos diferentes, graus variados de fé, mas todos lutando sob um único líder contra o mesmo inimigo. […] Porque a agressão é o que mantém essa causa viva. Lutar contra um inimigo é sempre mais fácil do que reger a complexidade humana. […] Não há mais pluralidade nem diversidade de práticas e interpretação… Apenas um único árbitro, uma única ‘religião pura’.”
Um dos pontos mais marcantes da história é que o livro, que foi escrito como um trabalho acadêmico da autora, serviu de objeto de estudo ao trazer à tona questões cruciais sobre a realidade do Ocidente, como a opressão das mulheres, que eram tratadas como objetos, forçadas a servir em casas de trabalho pesado ou como servas sexuais, e o comércio de seres humanos.
Além disso, a busca pela salvação por meio da devoção inabalável a uma causa e à própria fé, é o tema central do livro. A autora utiliza esses elementos não apenas para construir a narrativa, mas também para oferecer uma reflexão sobre as injustiças e crueldades que marcaram a vida de milhares de pessoas durante essa época turbulenta da história sudanesa.
“A situação aqui é outra. Nosso inimigo é muçulmano, e não será requisitado que os derrotados abandonem a fé. É o requisito de acreditar no Mádi que constitui a opressão. Então o que se deve fazer? A resposta é escolher a vida. Manter a fé no coração, mesmo que a língua seja forçada a dizer o contrário. Fugir, se puder. E, se não puder, viver na esperança de circunstâncias melhores. Alá tudo sabe. Tudo perdoa.“
“A Voz das Águas” é, sem dúvida, um tributo emocionante à história de um povo que viveu à mercê do imperialismo e através das experiências de Akuany, e de outros personagens, a autora nos apresenta uma realidade difícil, mas necessária de ser contada.
“Esse é o resultado de todo o sangue derramado ponto final posso ter sentimentos contraditórios sobre os métodos para essa conquista, mas não se deve nunca defender a ocupação estrangeira. A independência é natural e justa.“
Início da Leitura: 14/12/2024
Término da Leitura: 08/01/2025
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral

Leila Aboulela
Ano: 2024
Páginas: 272
Idioma: português
Editora: Harper Collins
Sudão, 1890. Uma revolução contra o domínio do Império Otomano começa a fervilhar, liderada por um homem que se autoproclamou o profeta redentor enviado por Alá.