Lindo, selvagem e cruel. É assim que o Alasca, o maior e menos povoado estado dos EUA, é conhecido entre os moradores locais. Apesar de ser um estado selvagem, o Alasca é um dos lugares mais procurados por famílias e pessoas que desejam deixar o passado para trás, reerguer suas vidas e encontrar novas mudanças no coração gelado da Grande Solidão.
Depois de voltar da guerra do Vietnã, Ernt Allbright leva uma vida cheia de pesadelos após ter sido liberado como prisioneiro de guerra. Traumatizado com tudo que viveu e viu durante anos lutando, seu passado assombra o seu presente e também a sua família, que mudou completamente após a sua volta para casa.
Cora sente na pele todo o estresse pós-traumático de seu marido e Leni, sua filha, vive se perguntando se não poderia levar uma vida familiar normal e sem mudanças a cada vez que um credor bate à porta da casa pedindo pagamento do aluguel. Sua família vive se mudando e buscando um novo recomeço, porém todo o esforço nunca parece o bastante para fazer com que o pai fique feliz e consiga se manter em um emprego decente, deixando a bebida e a explosão de violência de lado a cada estresse.
“Era como se sua família estivesse se equilibrando à beira de um altíssimo penhasco que podia desmoronar a qualquer segundo, desabar como as casas que caíam nas encostas instáveis e encharcadas de Seattle.”
Com tantas dificuldades, Ernt sente a esperança de um novo recomeço voltando para sua vida após receber uma carta em que dizia que havia um pedaço de terra no Alasca que agora pertencia a ele. Presente de honra de seu grande amigo Bob, que também fora prisioneiro de guerra e tinha morrido durante a luta e que, agora, tinha passado toda a sua herança para Ernt: uma cabana no meio do nada e que desaparecia no meio do gelo durante o inverno impiedoso do Alasca.
Cora sabe que seu marido precisa encontrar em si mesmo o homem que ele fora no passado, por isso, aceita se mudar novamente, mesmo com medo e sabendo que iriam para um local desconhecido, quase inabitável, como Kaneq, no Alasca. Apesar de Leni entender o que uma nova mudança signifique para o pai e enxergar a alegria nos olhos dele, ela não consegue se acostumar à ideia de ir para um lugar tão distante que sequer pode ser encontrado no mapa, mas acaba cedendo por amor à sua família.
Cora e Leni acreditam que essa mudança possa fazer bem para Ernt, que busca um local seguro e isolado, e juntas aceitam se aventurar em busca de um novo recomeço e uma vida familiar mais tranquila que pudesse solucionar os pesadelos mais sombrios daquele homem que amavam.
“O Alasca pode ser a Bela Adormecida em um minuto e uma traidora com uma espingarda de cano serrado na outra. Há um ditado: Aqui só se comete um erro. O segundo vai matar você.”
Leni sabia o que os pesadelos podiam fazer com uma pessoa e como lembranças ruins podiam mudar a personalidade. Porém, o que elas não esperam é que o maior pesadelo não acontecerá nos braços cruéis e selvagens do Alaskca, e que a segurança que realmente precisam não virá de um local isolado. O maior pesadelo será enxergar que todas as ameaças que acontecem do lado de fora da cabana são menores do que a ameaça que elas enfrentarão no pequeno espaço que agora chamam de lar.
Toda a construção da narrativa de A Grande Solidão é feita pela visão de Lenora, mostrando toda a história de sua família pelo olhar infantil, juvenil e adulto, as três fases de sua vida de aventuras, medo e paixão. Em muitos momentos a história ganha um clima pesado devido ao principal tema abordado: a violência doméstica mascarada por um amor doentio e a convivência familiar através do medo.
A grande escuridão que varre o estado do Alasca durante o inverno pode mudar as pessoas e mostrar o que elas realmente são, e esse detalhe deixou claro a construção da personalidade de Ernt durante o livro. Apesar de ele ter sofrido coisas que nem Leni e a mão podem imaginar, e elas acreditarem que toda a violência, raiva e pesadelos do pai tivessem sido por causa do que sofrera na guerra, a narrativa de Kristin conseguiu mostrar que nem tudo é o que realmente parece ser quando o pior das pessoas é revelado.
A autora soube retratar todas as fases de um amor doentio e de violência doméstica, usando como pano de fundo um dos locais mais remotos e isolados dos EUA. Esse detalhe criou a perspectiva de que a “grande solidão” é regida por sentimentos selvagens, cruéis e que, assim como a neve que cai durante o inverno do Alasca e encobre toda a paisagem, o amor também pode esconder muita coisa ruim. O inverno pode durar meses e a neve um dia irá derreter e revelar tudo que esteve escondido abaixo do branco selvagem, e o amor também é assim, uma hora as verdades ruins aparecem e finalmente é possível enxergá-las.
Muitos capítulos de A Grande Solidão são extremamente sensíveis, a autora consegue criar uma tensão que permanece na leitura mesmo após ter passado as páginas e seguido adiante nos parágrafos. É algo que fica marcado profundamente em quem lê a história, pois tudo é descrito com os mínimos detalhes que retratam a vida de mulheres que sofrem violência doméstica e ficam presas aos sentimentos fiéis por seus maridos, mesmo sofrendo agressões físicas e emocionais.
“Às vezes é preciso retroceder para avançar. Essa verdade eles conheciam. Mas havia outra verdade, uma que eles evitavam, uma da qual tentavam proteger um ao outro. Às vezes era perigoso voltar.”
Além disso, é tátil a construção de amor, medo e pena que Leni sente pela mãe, que mesmo tendo que aguentar tudo que sofre nas mãos de Ernt, protege-a de tudo que pode machucá-la. A relação de amor entre mãe e filha é forte nesse livro e mesmo nos momentos mais difíceis há cumplicidade, carinho e amizade entre elas.
Muitas coisas da narrativa de A Grande Solidão fizeram Leni amadurecer muito rápido, o que a fez perder boa parte de sua infância por questão de sobrevivência e proteção. Houveram muitas trajetórias no amadurecimento da personagem: os sonhos, o medo, a descoberta do primeiro e único amor, a coragem e uma vasta solidão para ter que lidar com tudo sozinha.
Em relação à Cora, a construção de sua personalidade despertou sentimentos muito confusos em mim. Achei inadmissível ela sofrer tanto, porém sei que isso é apenas um reflexo da realidade de muitas mulheres, e também sei quanto é difícil ter que enxergar uma verdade que não queremos acreditar ser real. Cora é uma mulher extremamente corajosa e enfrentou tudo para proteger o amor mais verdadeiro que ela já conheceu: o de sua filha.
É inacreditável o que é possível enfrentar por amor, e a autora soube trabalhar as características e todo o teatro das emoções de Cora de forma espetacular, tornando real um sentimento de união com a personagem, de estar de mãos atadas para que ela finalmente tomasse iniciativa e enxergasse todo o mal que Ernt estava fazendo a ela e sua família.
O livro é incrível e desperta muitas emoções. Em muitos momentos me peguei com a garganta fechada pelo choro, pela frustração de ver Cora sofrendo calada, por Leni enfrentar a mãe, e mesmo assim saber que tudo era por proteção. É uma avalanche de sentimentos que invadem a leitura, assim como o inverno que chega antecipado no Alasca e permanece por meses antes de o verão voltar.
“Na vasta extensão de sua natureza selvagem imprevisível, ou você se torna o melhor de si mesmo e tem sucesso, ou vai fugir correndo, do escuro, do frio e da dureza. Não há meio-termo, nenhum lugar é seguro, não aqui, na Grande Solidão.”
5/5
Ano: 2018
Páginas: 400
Autor: Kristin Hannah
Idioma: Português
Editora:Arqueiro