Maltratadas a vida inteira, Shelley considera a sua vida e a de sua mãe Elizabeth como as de um rato: sempre se esgueirando pelos cantos à procura de um lugar seguro para se esconder. Após ter sido vítima de bullying durante toda a trajetória do ensino médio, que começou lentamente com comentários irônicos e depreciativos que poderiam ser vistos como brincadeiras, mas que logo perderam qualquer vestígio de bom humor, levando a um violento atentado que culminou em seu afastamento da escola, uma autoestima fragilizada e quase à morte, Shelley e sua mãe decidem se mudar em busca de um lugar tranquilo em que finalmente pudessem superar seus medos.
“Não foi fácil encontrar uma casa que satisfizesse todas as nossas exigências: Deveria ser silenciosa. Deveria oferecer privacidade. Afinal, éramos ratos. Não procurávamos um lar. Procurávamos um lugar onde pudéssemos nos esconder.”
Ainda se recuperando dos traumas, do ataque que lhe deixou enormes cicatrizes e pesadelos e do abandono de seu pai após um divórcio conturbado, Shelley se muda com sua mãe para um pequeno chalé afastado da cidade e com vizinhos a quilômetros de distância. Sentindo-se segura entre as árvores, os campos e com apenas o som dos pássaros ao seu redor, Shelley sente como se tivesse sido libertada de uma prisão e finalmente volta a acreditar que sua vida está mudando e, dessa vez, para melhor.
Em seu décimo sexto aniversário, Shelley sente sua rotina voltando ao normal e fica cada vez mais confiante de que todos os seus pesadelos enfim tinham acabado. Contudo, a pouca tranquilidade que ela e sua mãe estavam começando a conquistar em sua nova casa é abalada quando um estranho invade o chalé e torna toda a paz em caos, revelando a triste realidade: elas ainda eram ratos e um gato, mais uma vez, tinha entrado na toca delas.
“Quando um gato entra na toca dos ratos, ele não vai embora deixando-os ilesos. Eu sabia como aquela história iria terminar. Ele mataria nós duas.”
Desde o começo do livro eu me senti completamente angustiada com as cenas em que Shelley narrava seu tormento com descrições explícitas sobre o bullying que sofria na escola e a violência com que eram executados contra ela. Essa parte da leitura é bem pesada, ainda mais se tratando de algo tão real e que muitas vezes não é percebido até que o pior aconteça.
A comparação criada entre a vida delas com a de ratos acuados e impotentes vivendo entre o medo de serem pegos, se esgueirando entre tocas e lutando para não encontrar um predador caiu perfeitamente no contexto do livro pois retrata as características das personagens como pessoas que jamais enfrentam seus agressores, que se calam por medo, que fogem de confusões e que aceitam caladas e indefesas a maneira indelicada e violenta como são tratadas.
“Fitando o céu, eu gostava de imaginar que vivia em uma época mais simples e inocente – de preferência antes de surgirem os seres humanos, quando a terra era um vasto paraíso verde e quando a crueldade de ferir apenas por puro prazer era completamente desconhecida.”
Em “Ratos”, Gordon Reece conseguiu trazer diferentes tipos de violência para um mesmo ambiente criando cenários que mostram o quanto o medo de agir ou reagir a alguma situação constrangedora ou de perigo pode levar a consequências irreversíveis.
Elizabeth, que abdicou de sua gloriosa profissão na advocacia a pedido de seu marido para cuidar da família e que anos depois sofreu calada todo o caos de seu divórcio, cedendo quase todos os seus direitos para não causar problemas. Shelley vendo o próprio pai abandoná-la e desaparecer sem ter mais notícias, sofrer bullying de meninas que ela considerava suas melhores amigas e carregar o peso de cicatrizes que relembram tudo que ela passou.
O autor conseguiu criar personagens fortes e determinadas a esquecerem pelo que passaram, porém as atitudes e pensamentos de Shelley começaram a se tornar muito infantis, imaturos e tornaram alguns capítulos completamente intragáveis. Após todo o ocorrido da invasão do chalé, a narrativa de Shelley saturou, sempre trazendo as mesmas informações e teorias, de diferentes visões, mas que continuavam batendo na mesma tecla. Isso a tornou extremamente chata, resmungona e completamente egoísta em certas situações, muito diferente do que eu esperava para ela no livro e nem um pouco madura como ela mesmo se achava.
“Nós achamos que controlamos o curso de nossas vidas, acreditamos que somos os capitães do navio, com nossas mãos no leme, mas, na verdade, é a sorte (ou o destino ou Deus ou como você queira chamar) quem está no controle. Podemos, na realidade, tirar nossas mãos do leme, ir até o fundo do navio e adormecer, porque é essa outra força quem decidirá se chegaremos à costa ou se afundaremos sem deixar vestígios. Acreditamos ter todo o controle, mas, na verdade, não temos nenhum.”
Quanto Elizabeth, minha empatia por ela só aumentou durante a leitura. A personagem se manteve forte, independente e com uma inteligência incrível apesar de transmitir características de uma pessoa submissa e sem poder de ação. Ela deu tudo de si e tornou as cenas de crime ainda mais angustiantes, instigantes e surpreendentes.
Por fim, o final não me agradou tanto, mas supriu o que eu esperava da história e mostrou que apesar da fragilidade, do medo e de situações de vida e morte até mesmo os ratos têm um limite.
Início da Leitura: 19/01/2023
Término da Leitura: 24/01/2023
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral
Gordon Reece
Ano: 2011
Páginas: 240
Idioma: português
Editora: Intrínseca
Shelley e a mãe foram maltratadas a vida inteira. Shelley, vítima de um longo período de bullying que culminou em um violento atentado, não frequenta a escola. Esteve perto da morte, e as cicatrizes em seu rosto a lembram disso. Os acontecimentos instauram o caos em tudo o que pensam e sentem em relação a elas mesmas e ao mundo que sempre as castigou.