“Se milhões de cidadãos, indivíduos, não confiam em uma moeda, a cédula é só papel colorido”. Assim começa a história da família Mandible, um típico clã norte-americano que enfrenta a derrocada do dólar e surgimento de uma nova moeda internacional, que projeta no futuro da sociedade um longo período de completa ruína financeira e extinção de um governo que, outrora, fora a potência mundial e um dos países mais importantes na economia global.
Desde sempre, a família Mandible foi criada com recursos suficientes, mantendo um padrão de vida seguro, estável e acima da média social. Contudo, com a queda do dólar, a inflação nos preços e aumentos dos juros das moratórias, a sobrevivência se tornou quase impraticável e qualquer estilo de vida, senão a pobreza miserável, se tornaram alvo apenas de idealizações de um futuro impossível.
Sem a herança patriarcal da família e com milhares de pessoas perdendo seus empregos, morrendo de fome, cometendo crimes e brigando por casa e comida, Florence enfrenta as dificuldades para manter sua família, equilibrando um sistema familiar frágil e complicado com as fraquezas da natureza humana. Sem ter para onde ir, todo o clã se muda para o pequeno apartamento de Florence em busca de abrigo, e juntos dividem as migalhas para sobreviver em um período que até a mais simples compra de mercado se torna um pesadelo.
Furtos, alcoolismo, abandono de incapazes e até mesmo mortes se tornam comuns durante a recessão e, antes, a família formada por diplomatas, escritores e economistas, se torna apenas mais uma fração na porcentagem de pessoas que veem a prosperidade dos Estados Unidos chegar ao fim.
“A Família Mandible”, livro 028 do Clube Intrínsecos, é um livro que mergulha de cabeça no universo complexo da economia e traz cenários que são muito próximos do ensaio de um futuro que pode fugir da ficção para o mundo real em alguns anos; ao mesmo tempo que traz à tona complexidade da sociedade contemporânea e os determinantes socioeconômicos globais, e como esses elementos estão interligados.
Apesar de ter uma boa base para a narrativa e um conteúdo que gera reflexão, o “economês” presente na obra (linguagem que apenas economistas ou pessoas que acompanham o mundo econômico saberiam traduzir e entender o conceito), repleto de termos como PIB, investimento, bolsa de valores, moratória, juros e crise econômica, torna a leitura extremamente arrastada e pouco inclusiva para aqueles que não estão familiarizados com o jargão econômico. Isso deixou a primeira parte do livro repetitiva e chata, fazendo com que eu pensasse em largar a leitura diversas vezes.
Além da linguagem técnica, “A Família Mandible” também apresenta um humor ácido ao abordar temas como política, divisão de estados e valores socioeconômicos. Essa abordagem crítica adiciona um tom satírico aos acontecimentos, gerando reflexões sobre a sociedade e a economia.
A obra também faz uma forte crítica ao capitalismo americano, apresentando um futuro distópico onde o colapso da economia dos Estados Unidos provoca mudanças globais significativas, como a ascensão da China como potência mundial e a transformação de bens básicos em artigos de luxo, quase inalcançáveis. A autora constroi uma narrativa que questiona o conceito de sociedade, as normas que a regem e a organização social dos grupos e esse cenário distópico mostra como estamos profundamente ligados ao sistema capitalista e como reagimos à privação de bens materiais.
Além das inúmeras críticas políticas, alfinetadas aos governos e formas de regimes empregados na sociedade, a história pode ser ilustrada por diversas análises sociais, como o estudo das interações humanas descritas pelo sociólogo Ferdinand Tonnies, que diferencia as interações em uma comunidade, onde são voluntárias e afetivas, das interações em uma sociedade, que são mais arbitrárias, artificiais e racionais.
“A Família Mandible” oferece uma visão provocativa e profunda sobre a sociedade contemporânea e a economia global, destacando a complexidade dessas interações e o impacto que têm em nossas vidas. Contudo, algumas partes poderiam ter sido cortadas dando mais ênfase à história dos Mandible depois do período em que foram expulsos da própria casa e o caminho até a cidadela de Jarred.
Senti falta de mais diálogo entre os personagens que envolvesse ações e menos “opiniões” dos personagens sobre investimento, bolsa, bancor, câmbio etc. Esses diálogos excessivos sobre a economia foram desgastantes e desnecessários, na minha opinião, e isso se evidencia ainda mais nos últimos capítulos onde a história dá um salto gigantesco apenas para dar um fim à narrativa.
Desde o começo da leitura as expectativas foram baixíssimas e se mantiveram assim, apesar dos poucos diálogos bons. É possível conhecer muito bem os personagens durante a trajetória da família, mas poucos deles são de fato interessantes, são apenas repetitivos e isso segue adiante até a divisão da história para o ano de 2047 onde o clã Mandible se sustenta apenas em Willing e Nollie.
Aliás, Nollie é a personagem mais centrada de todos, apesar da pouca aparição nos diálogos principais, e a única que se manteve bem estruturada apesar das adversidades passadas.
E, assim como no começo, achei o final tedioso. Infelizmente, apesar das boas reflexões que os temas trazidos pela autora causam, nenhum foi suficiente para tornar a leitura instigante.
“Estou convencida de que esse é o verão da minha vida. É como se… houvesse uma música de fundo tocando, ou como se a saturação das cores estivesse mais forte. Nesse verão não sou a pequena Addie, que fica sempre para trás. Não sou a pessoa de quem os outros esquecem quando contam aos amigos. Não sou a garota que o cara que ignora e some sem maiores explicações quando conhece alguém melhor. Posso ser quem eu quiser.”
Início da Leitura: 13/04/2024
Término da Leitura: 13/05/2024
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral
Lionel Shriver
Ano: 2021
Páginas: 448
Idioma: português
Editora: Intrínsecos
Uma guerra fria de escala mundial reestrutura a ordem socioeconômica do planeta, criando novos eixos de poder. A União Europeia se desfaz, a China enfim é alçada ao posto de maior potência global e o longo período de prosperidade dos Estados Unidos chega ao fim. Da noite para o dia, o dólar despenca e, além do valor, perde também seu prestígio: uma nova moeda internacional, o bancor, chega para substituí-lo.