Em “Lua de sangue” do Jo Nesbø, Harry Hole é um ex-detetive que foi retirado da polícia de Oslo por infrações graves e alcoolismo. Obrigado a viver em Los Angeles e fugindo das lembranças pela morte de sua esposa e melhor amigo, Harry passa seus dias visitando bares e se entorpecendo cada vez mais com bebidas até que a dor suma.
Enquanto Harry fica bêbado, duas jovens estão desaparecidas, a mulher que salvou sua vida em um bar é ameaçada de morte e o advogado de um famoso empresário de Oslo entra em contato querendo contratar Harry para investigar e achar o responsável pelo desaparecimento das garotas.
“E o fato era que Susanne e Bertine viviam à custa de homens, mas essa não era a única coincidência que as unia: elas dividiam o mesmo homem, Markus Røed, magnata do ramo imobiliário pelo menos trinta anos mais velho que elas.”
Quando uma das garotas é encontrada morta e o empresário se torna o principal suspeito, Harry é forçado a aceitar o trabalho para salvar a vida de Lucille e retorna a Oslo para deter o terrível assassino em série.
A primeira coisa que tenho a dizer é: QUE CONSTRUÇÃO DE PERSONAGEM FODA! O autor conseguiu criar a mente de um psicopata muito bem trabalhado, macabro e frio, de uma forma que nunca vi em outros personagens de romances policiais.
“Ainda não havia ajeitado a posição da cabeça de Bertini, que estava torta fazia dois dias, desde uma pancada que ele tinha dado na mesa. A cabeça estava instalada numa luminária de chão que ele tinha colocado em frente à cadeira do outro lado da mesa. Quando ligava o interruptor sobre a mesa a lâmpada de 60 w dentro da cabeça de Bertine se acendia, iluminando as órbitas vazias dos olhos e dando um tom azulado aos dentes na boca escancarada. Uma pessoa sem um pingo de imaginação diria que ela parecia uma abóbora de Halloween. Mas uma pessoa com a mente mais aguçada veria que Bertine inteira — pelo menos a parte dela que não estava à beira de um lago em Østmarka — se iluminava, irradiava alegria. Dava até para dizer que ela o amava. E a verdade é que Bertine havia amado Prim — ou pelo menos tinha chegado a desejá-lo de alguma forma.
— Se serve de consolo, gostei mais de transar com você do que com Susanne — revelou Prim. — Você tem um corpo mais bonito e… — ele lambeu o garfo —…eu gostei mais do seu cérebro. Mas… — Ele inclinou a cabeça e a encarou com tristeza — … eu tive que comer o seu cérebro para manter o ciclo. Os ovos. Os parasitas. A Vingança. Só assim vou ser uma pessoa completa. Só assim vou ser amado por quem sou. É, eu sei que deve parecer pretensioso, mas é a verdade: tudo que a gente quer é ser amado, não é mesmo?”
Jo Nesbø mais uma vez prova sua habilidade em criar uma trama intensa e completamente envolvente. Ele nos entrega uma história amarrada, onde o suspense se mantém até a última página. O autor manipula a leitura com maestria, fazendo jogo psicológico com os personagens e mudando o rumo da narrativa, mostrando que todas as teorias não passam de armadilhas meticulosamente planejadas por ele.
Mas apesar das ótimas características dos protagonistas, a história possui muitos personagens secundários que confundem a narrativa e traz a percepção de que a história não avança nunca, tornando-a devagar até metade do livro. Boa parte dos capítulos que trazem esses personagens poderia ter sido cortada pela metade ou até ter sido retirada, pois não possuem tanta conexão assim com a história principal que gira em torno de Prim na obsessão de conseguir a vingança por ter sido violentado quando era criança.
Os capítulos narrados do ponto de vista de Prim são particularmente pesados, carregados de uma frieza assustadora que reflete não apenas a personalidade do personagem, mas também os traumas que moldaram sua desumanidade. Prim carrega as marcas de uma infância marcada pelo abuso do padrasto, enquanto sua mãe falhava em protegê-lo, se negando a acreditar ou enxergar a violência que seu filho sofria. Esse passado sombrio se entrelaça à narrativa, oferecendo uma explicação macabra, mas plausível, para sua desconexão emocional e atos brutais.
“Mas, se o nosso objetivo é tirar conclusões com base no que sabemos sobre serial killer psicopatas com motivações sexuais, há todo tipo de razão para eles fazerem o que fazem, assim como acontece com qualquer outro assassino. É por isso que não existe um padrão de comportamento, pelo menos não em um nível tão detalhado que nos permita prever o próximo movimento dele. Só podemos fazer uma previsão com alta probabilidade de acerto.”
O mais interessante na narrativa é a visão forense dos acontecimentos e a explicação de Prim sobre o desenvolvimento e manipulação de um parasita mortal que responde somente a ele como hospedeiro, usando a própria mortalidade da natureza a seu favor. Ele manipula suas vítimas de forma quase científica, tornando-se irresistível para elas, enquanto inibe qualquer aversão natural que elas poderiam ter por ele. Essa metáfora do parasita é brilhante na construção do personagem, já que adiciona uma camada de complexidade ao modus operandi do assassino. É simplesmente incrível!
“O que atrai ratos infectados é o cheiro do gato e da urina dele — explicou Jibram. — O parasita gosta do cérebro e dos olhos do rato, mas sabe que só pode se reproduzir no intestino do gato. Então, o que ele faz? Manipula o cérebro do rato, que se sente atraído pelo cheiro do gato e o ajuda a voluntariamente voltar para o intestino do felino.”
No entanto, apesar de toda a genialidade da construção de Prim como assassino, a revelação de quem ele realmente era não conseguiu me convencer e acabou tirando um pouco da expectativa que criei. É como se todo o potencial do personagem tivesse sido deixado de lado em prol de um desfecho mais simples, que não sustentou o brilho prometido até então. Confesso que fiquei com aquela sensação de que o final poderia ter sido mais desafiante e que alguns personagens poderiam ter tido mais interação (e sentido) com toda a história e não serem apenas adições para criar uma história mais “cheia”.
Mas mesmo com contratempos, Jo Nesbø, com sua escrita frenética, sem respiros e que causa aversão pela mente macabra do personagem, conseguiu superar muito dos livros e da narrativa de Harlan Coben que já li e com certeza entrou pra lista dos meus autores preferidos.
“As pessoas se acham capazes de esconder os segredos, mas a verdade é que todos nós deixamos transparecer o que pensamos e sentimos, e quem está atento percebe tudo.”
Início da Leitura: 02/08/2024
Término da Leitura: 05/08/2024
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral
Jo Nesbø
Ano: 2024
Páginas: 496
Idioma: português
Editora: Record
Duas jovens estão desaparecidas, e a única ligação entre ambas é o facto de terem estado na mesma festa organizada por um famoso empresário. Quando o corpo de uma delas é encontrado, a polícia descobre uma invulgar assinatura deixada pelo assassino.