No bairro de Kensington, na Filadélfia, onde as ruas foram dominadas pela violência, cerca de novecentas vítimas de opioides foram encontradas mortas por overdose. A cada nova ocorrência do sexo feminino, Mickey não consegue evitar o pensamento mais aterrorizante – será que sua irmã Kacey está entre elas?
Mickey e Kacey cresceram juntas, mas enquanto Mickey escolheu um caminho de rigidez e responsabilidade na polícia, patrulhando as ruas da cidade, Kacey foi engolida pelo vício, vivendo à margem da sociedade. Kacey tinha apenas dezesseis anos quando teve sua primeira overdose. Cercada por amigos mal intencionados, se metendo em problemas na escola e com históricos de sumiços cada vez mais frequentes, Kacey foi encontrada quase sem vida, deitada em um colchão ao lado de uma seringa e um torniquete improvisado que realçava o longo e claro rio de sua veia usada para injetar heroína.
“Na primeira vez que encontrei minha irmã morta, ela estava com 16 anos. Foi no verão de 2002. 48 horas antes, numa sexta-feira à tarde, ela havia saído da escola com as amigas me dizendo que voltaria naquela noite. Não voltou. […] Passo a manhã inteira agitada. Meu cérebro não para de mandar sinais para o meu corpo. Tem alguma coisa errada. Subconscientemente, fico esperando a central entrar com um chamado sobre outro cadáver. E em algum nível estou esperando que esse cadáver seja de Kacey.”
Entre inúmeros casos de overdoses fatais, recentes e corpos em decomposição, Mickey não consegue deixar de analisar as estatísticas e continua em busca de sua irmã, mesmo que há anos não se falem.
Mas quando o corpo de uma mulher morta desconhecida perto dos trilhos de um antigo viaduto surge e sua irmã é dada como desaparecida, Mickey embarca em uma investigação perigosa para descobrir o responsável pela morte da mulher e a ligação de Kacey com esse crime.
Apesar do começo lento do livro, “longo e claro rio” tem uma narrativa que surpreende quando menos se espera. Os capítulos são revezados em passado/presente, alternando os tempos da infância onde Mickey e Kacey ainda viviam juntas e o momento atual onde Mickey acompanha uma série de mortes e assassinatos cada vez mais frequentes e sem respostas.
O cotidiano de Mickey é bem mundano, mas em cada página é possível sentir o impacto da constante sensação de que a personagem está vivendo cada dia mais em seu limite físico e emocional. A personagem vive seus dias tentando equilibrar uma rotina exaustiva de mãe solteira e patrulheira dedicada, com o peso das investigações que realiza e a preocupação de encontrar Kacey ainda viva, apesar das poucas esperanças que a rondam.
“Aguardo alguns instantes, com os olhos fechados, imaginando subitamente a minha vida dividida por uma linha nítida: antes desse momento e depois. É como eu me senti todas as vezes que recebi notícias ruins. O tempo passa arrastado na inspiração que as pessoas sorvem antes de dizer: eu tenho uma coisa para te contar.”
Além de sua irmã, o passado familiar de Mickey com sua avó, também traz emoções fortes para a leitura, já que a relação entre elas nunca foi tão boa. Gee é uma mulher dura, crítica e quase inacessível emocionalmente, traços que ficaram ainda mais evidentes após a morte de sua única filha, mãe de Mickey e Kacey.
Depois dessa tragédia, Gee assumiu a responsabilidade de criar as duas meninas, mas a tarefa foi cumprida de forma amarga e relutante. Ela nunca conseguiu oferecer o carinho, a atenção ou o cuidado que elas precisavam. Em vez disso, criou um ambiente de frieza e ressentimento, frequentemente culpando as meninas pela morte da filha e mantendo-as à distância emocional.
“Longo e Claro Rio” é um livro que não tem medo de explorar temas pesados e complexos. A todo momento a narrativa te faz refletir sobre o poder do amor, das decisões, escolhas, família, perdas e a luta para encontrar esperança em meio ao caos. Nesse ponto, todos os personagens são incrivelmente reais, pois trazem sentimentos complexos, humanos e que mostram como o ambiente em que crescemos pode nos moldar de maneiras tão diferentes.
“Eu me recusava a ouvir. Queria que tudo ficasse como estava. Tinha mais medo da verdade do que da mentira. A verdade mudaria as circunstâncias da minha vida. A mentira era estática. A Mentira era a paz. Eu estava feliz com a mentira.”
Nesse quesito, a narrativa, que promete ser um thriller, pode acabar não entregando a expectativa que muitas pessoas criaram, mas os crimes e investigações são muito bem conduzidos e criam tensão durante todo o livro. E os dramas familiares, que também estão presentes, como já mencionado, só dão ainda mais suporte para esse suspense.
Além disso, o tema pesado que a autora trouxe, sobre o uso de opioides e o impacto deles nos relacionamentos familiares, também traz uma reflexão forte sobre um dos assuntos mais discutidos nos EUA. O país, que está enfrentando uma crise na saúde pública por conta de ilícitos que vêm se alastrando de forma mortal, diz que o uso de drogas, como fentanil, têm crescido a cada ano, ultrapassando as taxas do padrão pré- pandemia; e que esse problema é muito mais antigo que imaginamos, tendo sido mais comum nos anos 90, onde víamos cenas de filmes ou séries de Hollywood em que um personagem viciado em drogas corria para o banheiro e procurava por frascos laranjas de remédio.
Por fim, “Longo e claro rio” é um livro que vale a pena ser lido, apesar da lentidão que não traz muitas expectativas no começo da leitura. Vale a pena a reflexão sobre causas e consequências de certas decisões e, principalmente, as forças e fraquezas do ser humano.
Início da Leitura: 20/09/2024
Término da Leitura: 26/09/2024
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral
John Berendt
Ano: 2021
Páginas: 416
Idioma: português
Editora: Trama
Em um bairro dominado pela violência e pelos opioides, duas irmãs separadas pelo destino se encontram em uma corrida contra o tempo para salvar uma à outra.