Uma mulher corta os pulsos em uma banheira. Quatro netas voltam à casa onde sua avó se suicidou. Ninguém sabe o porquê. A cena do banheiro, o sangue na água, o vazio deixado para trás – nada faz sentido. A casa, que se tornou a herança a ser dividida, guarda mais do que móveis antigos e memórias de infância. Entre suas paredes, pulsa a pergunta incômoda: será que a loucura é uma herança como outra qualquer?
“Porque a imaginação sempre romantiza o momento anterior ao choque, e o choque era iminente, estava prestes a emergir das cortinas. […] Se a casa tivesse Fantasmas, eles certamente viveriam aqui. Aqui e no espaço escondido entre as cortinas de flores e a parede. Há tantos cantos e Recantos nesta casa, tantas tocas onde as sombras se aninham.”
Faz apenas alguns meses desde que a avó de Lis, Erica, Nora e Olivia tirou a própria vida, e nenhuma delas compreende exatamente o que aconteceu. Reunidas na antiga casa de família, as quatro netas se veem forçadas a confrontar não só o passado silencioso e os segredos guardados em cada cômodo, mas também a si mesmas.
Lis tem questões psiquiátricas e vive sob a sombra de uma depressão severa. Sente que seu distúrbio psicológico é uma espécie de maldição familiar, passada de geração em geração.
“Não há saída de emergência sob a influência dos antipsicóticos, que a condenam ao tangível, ao fechado, aos pensamentos efêmeros. Não há saída até o anoitecer, pelo menos, e sonhava novamente com a morte, em se libertar da camisa de força em que o seu corpo se transformou.”
Erica é a vegana natureba, paz e amor, profundamente conectada com a natureza, espiritualizada, sempre flutuando em pensamentos sobre o etéreo e o invisível, desconectada do mundo real.
Nora, por sua vez, é jornalista freelancer e sobrevive à rotina puxada à base de metanfetamina, carreiras e benzodiazepínicos para conseguir dormir depois de dias eletrizada pelos efeitos psicoativos. Já Olivia tenta, a todo custo, manter a ordem. Precisa entender tudo o que percebe e, quando não entende, grita, se impõe, fala com grosseria, tenta se fazer superior para não parecer uma pessoa fraca.
“Mas parece que só uma viciada entende outra viciada. O cuidado com que espalham as migalhas, sempre ocultas e sempre à mão, nos melhores esconderijos; os resquícios do presente organizados para a escassez que o futuro poderia trazer. Isso tem algo de brincadeira infantil, porque as crianças, assim como os viciados, adoram acumular pelo simples prazer de ter muito só porque não querem ter pouco.“
As herdeiras não herdaram apenas uma casa. Herdaram silêncios. Sintomas. Fantasmas. Nora, por exemplo, ouvia vozes quando era criança. Erica crê em energias e sinais do universo, com seu misticismo e espiritualidade, parece mais presente do que qualquer uma delas — e, ao mesmo tempo, completamente ausente. Lis vê sua condição mental como um destino inevitável, sentindo ciúmes do laço entre seu filho e sua irmã Erica, uma ligação que a faz se sentir ameaçada, como se pudesse perder o amor do menino.
E Olivia que tenta controlar tudo e todos, que sempre foi avessa a relacionamentos, preferindo o conforto de seu mundinho fechado, recheado de estudos e leituras, esconde uma atração secreta por sua prima Lis, algo que ela não entende e a consome por dentro, silenciosamente.
Uma das coisas mais interessantes desse livro é que em muitos momentos, a leitura parece muito uma experiência psicodélica. Tem um quê de “estou chapada”, como se estivéssemos mergulhando numa viagem alucinógena onde todas as percepções sensoriais estão à flor da pele, induzindo estados alterados do corpo e da mente. Algumas cenas são tão viajadas que você se pergunta se está entendendo direito ou se é justamente esse o ponto: não entender. Apenas sentir.
“Mas a loucura é assim, algo que se pensa como um mal privado quando, na realidade, é sempre compartilhado, é um afeto grupal. Lis carrega o diagnóstico, mas a doença é de todas. […] Mas não se sabe se isso é fruto da hereditariedade ou do entorno, culpa da biografia ou do destino.“
Cada capítulo é como um poço profundo, escuro e carregado e você é puxado para dentro dele, afundando nas emoções, na dor, nos traumas e anseios das personagens. As páginas se inundam de pensamentos intensos, fragmentados, sensações desconectadas da lógica linear. Existe um ar mágico, etéreo, quase onírico, como se o tempo se dobrasse e os sentimentos escorressem entre as frestas da realidade. O livro não te leva para uma leitura simples. Ele te arrasta por uma imersão sensorial intensa, te fazendo sentir, mais do que compreender.
“Estava e está cética em relação ao que aconteceu esta tarde porque conhece melhor do que ninguém os delírios que as drogas podem causar, também acredita, com base em sua própria experiência, que as alucinações são uma linguagem em si, com seus próprios valores de verdade. Toda droga foi xamânica em sua origem. Todo viciado procura o transcendente ponto final e talvez o encontre.”
E no lado da compreensão (se é que podemos chamá-lo assim), os sentimentos das personagens são carregados de camadas e mais camadas de questões psicológicas. É quase como acompanhar uma longa sessão de psiquiatria, uma roda de análise coletiva onde, aos poucos, cada uma vai desnudando sua dor. Há uma carga filosófica em cada pensamento, em cada devaneio, como se os aspectos mais complexos da natureza humana estivessem sutilmente ocultos nos gestos, nos silêncios, nas memórias distorcidas e nas palavras não ditas.
Cada personagem é moldada por um conjunto específico de ausências, traumas e pequenas violências herdadas — e cada uma carrega consigo uma verdade que precisa ser trazida à luz. A narrativa a todo momento escava essas verdades, até que fique claro (ou não tão claro assim) o porquê de se sentirem como se sentem, de reagirem como reagem, mesmo quando nem elas mesmas conseguem nomear o que pulsa ali dentro.
Apesar de parecer confuso (e muitas vezes, durante as divagações das personagens, é realmente), senti que o livro propõe uma experiência completamente diferente (e talvez seja mais diferente ainda se realmente estivéssemos chapados, não é mesmo?).
“A realidade é maleável; há uma interpretação possível para cada corpo; e é melhor mudar a realidade do que alterar os corpos, porque são eles que acabam adoecendo. Mas coisas mais estranhas já foram vistas nesta casa.”
A narrativa não se preocupa em ser linear ou fácil; ela mergulha fundo no emaranhado da psique de cada mulher, onde um toque de mistério caminha lado a lado com os pensamentos mais sombrios da mente humana.
Um suspense que não se revela nos fatos, mas nas camadas do que é sentido e nunca completamente compreendido. É esse desconforto, esse quase delírio, que torna a experiência única, tentando decifrar não apenas o que aconteceu naquela casa, mas o que se passa dentro de cada uma daquelas mulheres.
Início da Leitura: 28/03/2025
Término da Leitura: 30/03/2025
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral

Lynette Noni
Ano: 2023
Páginas: 308
Idioma: português
Editora: DBA
Já faz seis meses desde que Carmen cortou os pulsos na banheira e ninguém sabe o porquê. Agora, suas quatro netas voltam para a casa onde a avó morreu. Quatro mulheres jovens e uma herança comum a decifrar: seria apenas uma casa ou uma maldição que corre nos genes?