Helena está longe de ser uma senhora comum prestes a completar 80 anos. Após a morte do marido, com quem foi casada por 46 anos, ela descobriu algo surpreendente: ainda havia muito a ser vivido. E mais do que isso, percebeu que não lamentava a perda. A viuvez, ao contrário do que se esperava, chegou como uma espécie de libertação.
Durante toda a vida de casada, Helena foi a esposa obediente. Seu mundo girava em torno de lavar, passar, cozinhar e esperar. Era a mulher silenciosa ao lado de um homem que não a via como parceira, mas como extensão de suas vontades. A jovem Helena, que um dia sonhou em fazer faculdade, explorar o mundo e se formar, foi calada ainda na adolescência, quando compartilhou seus sonhos com os pais e ouviu como resposta que deveria aprender a cuidar da casa e se preparar para casar com alguém que lhe desse uma boa moradia e filhos, uma bênção da vida.
Décadas depois, finalmente livre e sem ninguém para controlá-la, ela decide experimentar o mundo de um jeito novo e decide se arriscar no mundo dos aplicativos de encontros, onde acaba conhecendo homens com fetiches um tanto quanto peculiares, e mais do que isso: acaba descobrindo o prazer. Um prazer verdadeiro, vivido sem culpa ou repressão, que vai muito além da intimidade rotineira a que sempre foi submetida.
Porém, com medo do julgamento alheio, principalmente por conta da sua idade, Helena mantém seus encontros em segredo, inclusive dos filhos. Eles jamais imaginariam por onde ela andava ou com quem estava. Mas a verdade, assim como o que é bom, acaba não durando para sempre. Em uma noite qualquer, enquanto acendia a lareira para criar o clima com um de seus amantes, Helena acaba provocando um pequeno incêndio. Os bombeiros são acionados e, inevitavelmente, seus filhos acabam sendo informados.
Sem querer revelar a verdadeira razão do acidente, ela disfarça dizendo que foi um descuido como qualquer outro. No entanto, após o ocorrido, Helena é obrigada a passar um tempo na casa da filha, Luiza. Enquanto tenta manter a discrição, o filho Rui — encarregado da reforma da sala — encontra uma caixa preta de veludo, escondida entre os pertences da mãe. Dentro, objetos que eles jamais imaginariam ver ligados àquela senhora elegante e recatada.
Desconcertados, os filhos começam a especular. Será que a mãe está perdendo o juízo? Estaria ficando demente? Helena, então, decide que já não há mais motivo para silêncio e decide revelar cada detalhe: de onde vieram os objetos, como foram vividos os encontros, e o que aprendeu com tudo isso. Ela fala, sem rodeios, sobre como pessoas idosas também sentem desejo, também gostam (e podem, sim!) querer fazer sexo. Fala sobre liberdade, prazer e redescoberta. E, acima de tudo, sobre o direito de ser dona da própria história, ainda que só comece a escrevê-la aos 80 anos.
Um dos pontos que mais me surpreendeu em “E se eu morrer amanhã?” foi a forma como a autora abordou um tema ainda tão incomum e cercado de preconceito: a sexualidade na velhice, ou, como poucos se atrevem a chamar, o sexo geriátrico. Nunca tinha lido um romance que trouxesse essa perspectiva do sexo com tanta coragem e leveza.
É curioso como ainda hoje, mesmo com tantos avanços nas pautas sociais, o desejo de uma mulher idosa continua sendo tratado como uma anomalia ou uma piada. Existe uma ideia enraizada de que, depois de uma certa idade, o corpo feminino deve simplesmente se apagar — virar invisível, discreto, servil ou, no máximo, “fofo”. Mas esse livro escancara o contrário: desejo não tem prazo de validade.
“O amor de mãe é incondicional, mas, quando nos apercebemos de que os dias que nos restam estão contados, começamos a ter menos energia para lidar com problemas que não são nossos. A minha consciência está tranquila.”
O mais incômodo (e talvez o mais necessário) é perceber que o tabu está em todo lugar, inclusive dentro das famílias. Os filhos não sabem lidar com o fato de que suas mães — aquelas mesmas que cuidaram, nutriram, ensinaram — possam ter vontades, libido, prazer. O sexo na velhice, especialmente para mulheres, vira quase um assunto proibido, sempre envolto em silêncio e julgamento. Se um homem idoso tem namoradas, é galanteador. Se uma mulher idosa tem amantes, é um escândalo.
O livro, tem uma narrativa que alterna entre um narrador onisciente e a própria Helena falando diretamente com quem está lendo. É quase como se estivéssemos lendo o diário de uma mulher que decidiu, sem pedir licença, viver como bem entende. E que bom que Helena decidiu!
Essa quebra da quarta parede que Helena faz ao longo da narrativa me lembrou bastante a forma como Lady Whistledown, em Bridgerton, compartilha os segredos e fofocas da alta sociedade. A diferença é que, no caso de Helena, não estamos ouvindo histórias alheias, estamos lendo as verdades mais íntimas da sua própria vida.
O mais interessante é a forma como a autora traz esses temas sem didatismo, com humor ácido, informalidade e um ritmo gostoso de acompanhar. A personagem principal quebra a quarta parede o tempo inteiro, nos puxando pela mão pra pensar com ela, questionar junto, rir junto. Ela fala sobre prazer, desejo, masturbação e orgasmo com uma naturalidade incrível.
A narrativa me lembrou muito da peça “E ninguém dirá que é tarde demais”, com Arlete Salles. Assim como Helena, Arlete também fala abertamente sobre seus desejos e sua sexualidade, mesmo durante um contexto tão delicado quanto a pandemia da COVID-19. Ambas as personagens me encantaram com esse tom confessional e descomplicado, transformando o assunto em algo natural.
“Ainda bem que tiveste uma menina para cuidar de ti na velhice”. Será que a necessidade que sentia de cuidar da mãe lhe fora incutida por frases como essa, ou faria parte do código genético feminino? Estariam as mulheres geneticamente irremediavelmente programadas para cuidar dos outros? Filhos, pais, maridos?”
Porque, afinal, por que é que mulheres sempre tiveram que se esconder para viver a própria sexualidade? Por que fomos ensinadas a calar, a fingir que não sentimos, a aceitar um modelo de casamento em que a obediência era mais importante do que o prazer? Onde homens são criados para se orgulhar do próprio desejo e mulheres, para escondê-lo com palavras poéticas ou vergonhosas como “lá embaixo”, “as vergonhas”, ou “a boca do corpo”?
Esse livro é um chute de bico na porta de qualquer hipocrisia sobre o assunto. É um lembrete de que, sim, é possível envelhecer com desejo, com vontade, e que isso não deveria ser motivo de espanto. Ele mostra que estar à beira dos 70 (ou dos 80, por que não?) não significa abrir mão da feminilidade, muito menos da sexualidade.
“As recordações são tudo que me resta da minha passagem. Com elas, nunca me sinto só, mesmo aqui, ao longe, algures na Eternidade.”
A única coisa que me incomodou um pouco foi o fato de o livro não ter sido traduzido para o português do Brasil. A tradução ficou no português de Portugal, e em alguns momentos certos dialetos, expressões ou construções de frase soam estranhos ou até um pouco confusos de entender. Nada que comprometa a leitura por completo, mas pode causar uma pequena estranheza, principalmente para quem não está acostumado com esse tipo de regionalismo.
“E se eu morrer amanhã?” é uma leitura mais do que necessária para todas as mulheres (e homens também, para entender mais sobre as mulheres)! Não só por ser diferente de tudo o que já li, mas por cutucar aquilo que tanta gente ainda tenta fingir que não existe.
Início da Leitura: 08/04/2025
Término da Leitura: 10/04/2025
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral

Filipa Fonseca Silva
Ano: 2023
Páginas: 184
Idioma: português
Editora: Suma de Letras
E se Eu Morrer Amanhã? é um romance hilariante, que nos leva a refletir sobre os preconceitos em relação às mulheres mais velhas e o enorme tabu em torno da sua sexualidade. É também uma luz de esperança, iluminando a ideia de que nunca é tarde para descobrir o que nos faz feliz.