Violette Trenet vê, todos os dias, amantes, viúvos, filhos e esposas passarem pelos portões do cemitério onde trabalha. Cada um traz sua própria história de amor, despedida e saudade. Mas, antes de estar ali, entre flores e lápides, ela já havia conhecido a solidão desde muito antes. Ainda no ventre, foi rejeitada por uma mãe que não a queria. Nasceu praticamente morta e foi entregue a um orfanato, onde viveu até os 17 anos.
“Em minha casa modesta e nos corredores de meu cemitério que as famílias derramam suas palavras. Ao chegar, ao sair, às vezes nos dois momentos. Um pouco como os mortos. No caso deles, são os silêncios, as lápides, as visitas, as flores, as fotografias e o modo como os visitantes se comportam diante das sepulturas que me contam coisas sobre sua antiga vida. Sobre quando estavam vivos. Em movimento.”
Sem nunca ter experimentado o poder da conexão e do amor, Violette conheceu Phillipe Toussaint, a quem se agarrou apaixonadamente, decidindo fugir do orfanato e ir morar com aquele homem que parecia ser um sopro de vida em um sentimento que jamais achou que fosse experimentar. Pouco tempo depois, Violette engravidou. Mas o conto de fadas que achava que vivia não durou muito tempo.
Sua sogra, que sequer a conhecia, tratou-a como algo descartável: uma qualquer, sem valor. E com o peso do medo de ser deixada novamente, Violette permaneceu, aguentando todas as alfinetadas e opiniões sobre ela, como se ela nunca estivesse presente para se defender. Obrigados pela mãe de Phillipe a trabalharem como vigias ferroviários, numa tentativa de demonstrar responsabilidade e sustentar a filha que estava por vir, Léonine nasceu.
“Tive a sensação de estar em uma comédia italiana, sem a beleza dos Italianos. […] já estava acostumada a ouvir falar em mim, da minha vida, do meu futuro, como se aquilo não dissesse respeito a mim. Como se eu não fizesse parte da minha história, da minha existência. Como se eu fosse um problema a ser resolvido, não uma pessoa.”
E com ela, nasceu também uma nova Violette, uma mulher que conheceu o amor de verdade pela primeira vez. Um amor imenso, puro, que preenchia todas as lacunas deixadas por uma infância vazia e um marido ausente. Phillipe, por sua vez, continuava indiferente. Dedicava seu carinho apenas à moto, aos amigos e às mulheres que procurava pelas ruas.
“Em uma subcamada mais perversa de sua alma, ele havia percebido que eu tinha o medo gigante do abandono, então não iria embora. E, com o filho dele, Phillipe Toussaint, sabia que tinha me prendido ali a seu alcance. […] Nossa relação era ao mesmo tempo cordial e inexistente. Nossa relação era muda, mas nunca violenta. Só silêncio.“
Quando Léonine tinha sete anos, a mãe de Phillipe a levou para participar de uma colônia de férias com outras amiguinhas da escola, mas então aconteceu um acidente, um incêndio, e Léonine morreu, sufocada pelo gás e queimada pelo fogo da explosão.
A dor foi tão profunda que Violette nunca foi visitar a filha no cemitério. Após muito tempo sem coragem, Violette decide enfim ir até o túmulo de Léonine e lá acaba conhecendo Sasha — um homem que, com suas palavras e presença, ofereceu a ela uma nova perspectiva de vida e um trabalho que lhe permitiria ficar para sempre perto de sua filha.
“É sempre assim com a morte. Quanto mais antiga ela é, menos poder tem sobre os vivos. O tempo aniquila a vida. O tempo aniquila a morte. […] Adoro rir da Morte, ridicularizá-la. É meu jeito de acabar com ela. Assim, ela fica menos importante. Ao brincar com a morte, deixa a vida a assumir o controle, assumir o poder.“
Foi assim que Violette se tornou guardiã do cemitério e passou a tratá-lo como um lar. Escrevia discursos de despedida, levava flores aos túmulos esquecidos, anotava detalhes dos velórios e mantinha cada sepultura limpa, cuidada, como se conhecesse intimamente cada pessoa ali. Transformou aquele espaço, tão associado à morte, em um santuário de paz, memória e amor. Um lugar onde, em meio à morte, ela encontrou sua própria vida.
No livro, acompanhamos de perto a trajetória de Violette com sua infância negligenciada, o abandono emocional de Phillipe, a perda irreparável de sua filha, o processo de luto e, aos poucos, ela descobre que viveu durante anos sem conhecer algumas verdades fundamentais sobre sua própria história. E quando essas verdades enfim vêm à tona, tudo ganha um novo significado.
Preciso dizer que levei tempo demais para enfim criar coragem de ler esse livro, mas me surpreendi de uma forma que eu nunca imaginaria. A narrativa é extremamente sensível, dolorosa, mas conduzida com tanta delicadeza que se torna quase leve — mesmo tratando de temas tão pesados como morte, abandono e solidão. E esse é um detalhe que acredito que seja mutável em relação à opinião que cada pessoa sente lendo essa história, porque muito além de coisas mórbidas, o livro traz uma reflexão profunda de como nós, meros humanos, reagimos em relação à morte, como certos acontecimentos moldam nossa trajetória e como, mesmo nas situações mais sombrias, é possível encontrar beleza no recomeço.
Os personagens secundários são simplesmente encantadores, todos com histórias próprias e profundas, que nos ajudam a entender ainda mais a importância das conexões humanas. É impossível não se apegar a cada um deles, assim como é impossível gostar de Phillipe, que não passa de um homem egoísta, ausente, e que parece querer usar toda a sua cota de infelicidade nos outros.
Além disso, as passagens do diário de Irène, que no início achei longas demais, acabam se revelando fundamentais para entender a história de Violette. Elas podem até parecer desconexas com a narrativa, mas anote: elas irão fazer sentido quando for a hora.
E assim como as lembranças de Irène, o plot também me pegou completamente desprevenida, pois traz um peso emocional muito além da revelação de como tudo aconteceu. Foi como um soco silencioso no estômago, mas que torna a história inesquecível.
“Água Fresca para as Flores” trata algo muito além do luto, trata sobre a esperança, as despedidas, os recomeços, o amor e a ausência. E lembrando: a tristeza está presente, sim, mas não como algo sombrio, mas como parte de um processo de cura, um caminho necessário até que se encontre, de novo, a vontade de viver.
Início da Leitura: 27/01/2025
Término da Leitura: 29/01/2025
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral

Valérie Perrin
Ano: 2022
Páginas: 479
Idioma: português
Editora: Intrínseca
Violette Toussaint sabe bem disso. Zeladora de um cemitério em um vilarejo da Borgonha, ela é testemunha dos visitantes que mantêm vivas as histórias de seus entes queridos.