Emma e Agathe são irmãs muito diferentes em personalidade, mas unidas por uma história em comum e, principalmente, pelo amor que sentiam por Mima, a avó que foi como um farol em meio à escuridão das vidas delas. Mima faleceu recentemente, e a ausência dela deixou um vazio imenso. E agora, para elas, tudo parece mais difícil: lidar com o luto, com os fantasmas do passado e com o fim de uma era que, mesmo com suas dificuldades, trazia aconchego.
“Eu teria preferido nunca ter proposto à minha irmã que passássemos nossas últimas férias ali, como quando éramos pequenas, antes que a casa pertencesse a outras pessoas. Eu teria preferido nunca saber como seria a sensação de ver a porta se abrir e não ouvir a voz de nossa avó pedindo que tirássemos os sapatos.”
Emma é metódica, tem TOC de organização e faz listas para tudo. Essa é a sua forma de manter o controle sempre. Desde pequena, Emma sempre foi a mais pragmática, vestida com a maturidade que os outros colocavam sobre ela o tempo todo, sem sequer perguntar se aquilo lhe servia, um exemplo. Agathe, por outro lado, teve uma infância marcada pelo histórico de crises de ansiedade e se tornou uma adulta impulsiva, intensa e desleixada — mas também extremamente persistente. Quando quer algo, insiste até conseguir.
A saudade que sentem de Mima acaba unindo Emma e Agathe na antiga casa da avó, um lugar repleto de lembranças e sentimentos que resistem ao tempo. As duas então se reencontram não só como irmãs, mas como duas mulheres tentando se reconectar com suas origens e com a força que as manteve de pé durante todo esse tempo.
“Não imaginei nosso reencontro assim. Fui ingênua o suficiente para pensar que, se ela insistia em passarmos esta semana juntas, era para nos aproximarmos Ponto Final De que adianta estar lado a lado se permanecemos distantes? […] Não sei se não temos nada para conversar ou se temos muito a dizer e não sabemos por onde começar. Há um vazio de cinco anos em nossa história.”
A aproximação entre elas é silenciosa, algo que ambas desejavam há tempos, mas que nunca tiveram coragem de admitir em voz alta, e é justamente ali, entre os fantasmas do passado da avó e a presença ainda tão viva de Mima, que Emma e Agathe reaprendem como o amor entre irmãs é necessário.
É difícil colocar em palavras o quanto esse livro me tocou. “Uma vida bela” me destruiu de muitas formas. Tocou em feridas que eu nem sabia que estavam abertas.
A narrativa alternada entre os pensamentos de Emma e Agathe, ora na infância, ora na fase adulta e o formato de diário dá um ritmo bem íntimo à leitura e torna a história ainda mais profunda. É impossível não se sentir lendo as memórias das personagens. A relação entre Emma e Agathe, por mais conturbada que seja, é genuína e fraternal, afinal elas passaram por poucas e boas, mas nunca deixaram de ser irmãs e de se amar mesmo em silêncio.
Além da perda precoce da infância de Emma e Agathe, que foi marcada profundamente pela mãe delas, que começou a negligenciar cuidados e atenção quando ainda eram pequenas, as duas sofreram todas as consequências do divórcio dos pais, a morte do pai em um acidente, e logo depois, a perda parcial da própria mãe — que se transformou em uma mulher fria, instável e muitas vezes agressiva por conta do alcoolismo e da depressão.
Afetando não só os estudos e laços sociais, Emma e Agathe não tinham para onde correr, restando a elas somente se agarrarem uma à outra, encontrando refúgio na amizade que construíram entre si e sobrevivendo aos acessos de fúria da mãe, sem nunca contar a ninguém. O único momento em que sentiam que ainda tinham uma família de verdade, era quando podiam ir para a casa de Mima, contando os dias para as férias de verão.
Agathe foi diagnosticada tardiamente com transtorno bipolar tipo 2, algo que, se tivesse sido descoberto ainda na infância, poderia ter mudado completamente o rumo de sua vida. Talvez suas relações tivessem sido menos difíceis, talvez ela própria tivesse se entendido melhor. Por anos, Agathe lutou contra sensações que não sabia nomear, emoções intensas demais para controlar, enquanto tentava se encaixar em um mundo que não compreendia sua dor silenciosa.
Emma, sua irmã, sempre tentou ser o seu porto seguro. Desde cedo, fazia de tudo para protegê-la e, muitas vezes, assumia para si o peso que não deveria carregar. Para afastar a mãe agressiva, Emma desviava a atenção, suportava sozinha as palavras duras, os olhares frios, os gestos de violência emocional e física. Era como se, desde criança, ela soubesse que precisava ser o escudo de Agathe, mesmo que isso significasse se ferir no processo.
“Abro a boca para responder, para lembrá-la das surras monumentais, dos acessos de fúria, dos objetos explodindo contra a parede, das chantagens de suicídio, das recriminações, mas mudo de ideia. Nós vivemos no mesmo apartamento, com a mesma mãe, entretanto Agathe e eu não temos as mesmas lembranças, e era exatamente isso que eu queria. Sempre que podia, eu a isolava em seu quarto, com a música alta o suficiente para abafar os gritos. Infelizmente, ela não escapou incólume. Às vezes, quando era alvo de raiva de nossa mãe, eu não conseguia desviar a atenção para mim. Porém, em comparação com a minha infância, foi um pouco mais suave.”
As cenas dos acessos de fúria da mãe delas são bem, bem pesadas. São descrições explícitas, cruas, que doem a todo momento durante a leitura. Há momentos em que o texto pesa no peito, porque a violência é muito real. É muito triste testemunhar como a relação entre mãe e filhas é conturbada, marcada por medo, trauma e silêncios que falam mais do que qualquer grito.
E mesmo depois de tantos anos sem contato com a mãe, Emma ainda se sente ameaçada por ela. A simples menção ao nome, a ideia de estar próxima novamente, já desencadeia um desconforto físico, uma tensão que até quem lê pode sentir. É como se o corpo dela lembrasse de tudo, mesmo quando a mente de Agathe falha em recordar detalhes.
Mima é o alicerce de toda a narrativa. Uma mulher, uma avó que, com seu amor incondicional e sua presença constante, ofereceu às irmãs muito mais que segurança, acolhimento e alegria. Ela foi o porto seguro em meio às tempestades.
“Não a vi envelhecer. Perdi seus últimos anos. Ligávamos uma para outra com frequência, eu enviava fotos, mas não a visitava. Eu achava que tinha tempo, não imaginava que ela poderia desaparecer um dia. Ela foi a única que não nos abandonou. Era a figura sólida, a referência imutável. Em minha fuga, fiz minha avó ser um efeito colateral.”
O livro traz uma mensagem poderosa sobre o valor da vida, sobre a importância de perdoar, estar presente, aproveitar cada momento com quem se ama, aprender a ceder e seguir em frente… mesmo que a caminhada nem sempre seja justa ou fácil. O livro mostra que viver é, acima de tudo, continuar, mesmo quando tudo parece impossível de controlar.
Virginie Grimaldi consegue retratar com muita sensibilidade os sentimentos e os traumas de cada personagem. Os conflitos são reais, os pensamentos são profundos, e o peso emocional é muito mais que palpável. O final do livro me pegou desprevenida. Mesmo já desconfiando da possibilidade, mas a forma como tudo se revelou foi devastadora — e, ao mesmo tempo, libertadora.
“Esse desvio de cinco anos acabou nos reunindo. Poderíamos ter mudado, não nos reconhecido, ou não mudado nada e não suportar mais uma a outra, mas levamos menos de um minuto para voltar a caminhar lado a lado. Existe entre nós algo poderoso do que todas as discussões, mais resistente do que todas as diferenças. Essa sensação me invade agora, e eu me sinto fortalecida.”
“Uma Vida Bela” fala sobre laços familiares, sobre a complexidade das relações, sobre o que significa amar alguém profundamente, mesmo quando esse alguém está quebrado por dentro. E de todos os livros que li, até agora, esse com toda certeza do mundo foi o mais emocionante, pois ele consegue trazer para a leitura os mesmos sentimentos das personagens: a abertura da ferida, o entendimento sobre as lembranças e, então, a cura.
Início da Leitura: 31/01/2025
Término da Leitura: 01/02/2025
Classificação final:
Escrita
Personagens
Enredo
Geral

Virginie Grimaldi
Ano: 2024
Páginas: 272
Idioma: português
Editora: Gutenberg
Emma e Agathe Delorme são irmãs que, apesar de terem crescido juntas, seguiram caminhos muito diferentes. Após cinco anos sem contato, elas se reencontram na casa de férias da família para lidar com os pertences de Mima, a avó querida que faleceu.